Porque se fala dialecto leonês em Terra de Miranda?

Apesar de já em 1882 Leite de Vasconcelos ter entrevisto o carácter dos falares a que chamou «co-dialecto mirandês», foi todavia Menéndez Pidal quem, em 1906, definitivamente estabeleceu a filiação leonesa da linguagem territorialmente portuguesa da Terra de Miranda. Foi ele ainda quem então procurou a explicação histórica deste facto linguístico, julgando encontrá-la nas circunstâncias de esse território ter pertencido, em época romana, ao convento asturicense e de a Igreja de Bragança, com todos os seus territórios até ao Tuela, se encontrar incluída na Idade Média na Diocese de Astorga. É este problema que, não o julgando assim definitivamente resolvido, me proponho aqui retomar. 

O texto do «Parochiale» suevo do século VI não permite determinar com precisão os limites respectivos das dioceses de Brácara e Astúrica nessa época. À primeira pertenciam, sem dúvida, não só a Terra de Panóias (Pannonias- hoje Vila Real e Murça), mas, mais para oriente, Ledra (Laetera com variantes) e Bragança (Brigantia). Aliste, que aparece num dos textos, é fruto de uma interpolação tardia em favor de Braga, mas não consta da lista das paróquias asturicenses. Se não fosse demasiado arriscado identificar Astiatico (variante Astiatigo), da lista dos pagi bracarenses, com Sayago, poderíamos afirmar sem receio que o domínio da Igreja de Braga, estendendo-se a oriente para a margem esquerda do Douro, abrangia então a região que nos interessa. Sem essa identificação, realmente arriscada, e sem a possibilidade de identificar os restantes pagi, vemo-nos forçados a confessar que nada de seguro sabemos a tal respeito. 

Fossem porém quais fossem os limites em questão, eles devem ter permanecido inalterados até ao século VIII, quando, diante do avanço das forças muçulmanas, os prelados metropolitanos da Galiza foram obrigados a abandonar a sua sede e a refugiar-se no norte, em Lugo. Desde então até ao final do século XI os bispos de Lugo recebem simultaneamente o título de bispos de Braga e, por conseguinte, o de metropolitas da Galiza, e exercem a sua jurisdição eclesiástica e temporal sobre o território, mas não, ao que parece, sobre toda a diocese de Braga. Durante todo o século XI, os únicos territórios mencionados pelos documentos, na moderna Província de Trás-os-Montes parecem ser os de Chaves (Flavias) e Panóias. Do século X (974) chegou até nós um documento, pelo qual Ramiro III e sua tia D. Elvira, ao suprimirem a recém-criada diocese de Simancas, restituem às sés de Astorga e Leão as terras que lhes pertenciam e delas haviam sido alienadas em favor de Simancas. Entre esses territórios, na versão publicada por Flórez, figuram, «eclesiae quae sunt in Bregantia per illum rivulum qui dicitur Tuella, et discurrit usque dum intrat in Dorio contra Zamora ad partem Orientis, et intus Alisti». Sabemos porém, desde que Sánchez Albornoz descobriu na própria Sé de Astorga o diploma original, que o documento de Flórez é uma falsificação do século XII e que o original não menciona aqueles territórios. 

Todavia, não resta dúvida de que eles estiveram sob o domínio daquela Sé, porquanto em 1103, restaurada no fim do século anterior a cátedra bracarense, o Papa Pascoal II se dirige ao Bispo Pelágio de Astorga, recomendando-lhe que restitua ao Arcebispo Geraldo «parrochias Laedram uidelicet et Alistam et Braganciam, quas desolationis tempore perdiderat» e que aquele «tiranicamente retinha em seu poder». 

Não sabemos por quanto tempo foi exercido este domínio e muito menos o papel que ele exerceu no repovoamento e colonização daquelas terras transmontanas. Todavia, teremos de admitir a possibilidade de que ele tenha sido de facto a causa do estabelecimento de dialectos leoneses nessa região, onde porventura, por se encontrar mais próxima, a acção episcopal seria mais intensa ou mais eficaz. Mas depois de admitirmos essa possibilidade, temos de reconhecer também que ela não seria explicação suficiente para o facto de eles se terem conservado em terras que, desde os primeiros anos do século XII, regressaram à jurisdição eclesiástica de Braga. Tal explicação, encontrá-la-emos, segundo creio, noutras circunstâncias históricas, das quais uma só por si era bastante para dar razão da situação linguística da Terra de Miranda e que, no seu conjunto, pelo menos nos deixam compreender por que motivo as falas leonesas perseveraram, com tanta persistência, até ao dia de hoje em domínio português. 

Destas circunstâncias devemos principalmente pôr em relevo a intensa colonização leonesa realizada no século XIII, que as inquirições de D. Afonso III nos revelam, na região formada, entre os rios Douro e Angueira, pelo concelho de Miranda e parte do de Vimioso, colonização que se estendeu aliás mais para ocidente dos limites actuais do dialecto mirandês. 
Nessa colonização o papel primordial foi desempenhado pelos mosteiros de Moreruela e San Martín de Castañeda, mas colaboraram nele igualmente os Templários de Alcañices e vários particulares. 

E porque teriam subsistido até hoje os dialectos leoneses da Terra de Miranda? Por duas razões: a primeira, o isolamento dessa região em relação ao resto do país, a que já Leite de Vasconcelos (Estudos 2, II) se referiu, e a segunda, em parte consequência daquela, o contacto com as vizinhas terras do reino de Leão. Do difícil acesso ao território mirandês fala-nos a narração quase heróica da viagem que Leite de Vasconcelos empreendeu do Porto a Deus Igrejas em 1883 e em que gastou cinco dias! Sobre as relações com o país vizinho falam-nos vários documentos publicados pelo Abade de Baçal em que, desde D. João I a D. João III, se facilita o intercâmbio comercial entre a vila e o termo de Miranda e os habitantes das terras de Aliste e Saiago. Um deles porém mostra-nos que essas relações não se limitavam ao comércio, mas que eram frequentes os casamentos entre os dois lados da fronteira. No final do século XIX refere-se Leite de Vasconcelos «às relações constantes com os espanhóis», que chegavam ao ponto de cada mirandês poder falar com fluência o castelhano, além da sua própria língua e do português. 

Em resumo: se o domínio da Sé de Astorga sobre a quase totalidade do actual distrito de Bragança foi suficientemente prolongado e a sua acção colonizadora suficientemente intensa – a respeito de uma e de outra nada de facto sabemos – para estabelecer na Terra de Miranda o uso do dialecto leonês, a colonização leonesa do século XIII, que provavelmente se prolongou até ao século XV, não contribuiu decerto em pequeno grau para a fixação da sorte linguística daquela região. A bem dizer, ela só era bastante para a explicar. O isolamento desta zona com respeito ao resto do país e, pelo contrário, o contacto íntimo, quer comercial quer social (casamentos), com os povos de Aliste e Saiago permitem explicar a sua conservação até aos nossos dias. 

[Num importante estudo intitulado Dos problemas iniciales relativos a los romances hispánicos, que serve de introdução ao primeiro volume da Enciclopedia lingüística hispánica (Madrid 1959, pp. XXVII-CXXXVIII), o Prof. Menéndez Pidal volta a ocupar-se do «caso de Miranda do Douro» pp. LII-LIV) para, tomando posição relativamente ao ponto de vista exposto no meu artigo, defender o carácter originariamente leonês do idioma de Miranda e rejeitar a possibilidade de que este tenha sido determinado pela colonização do séc. XIII. Sem intuito polémico mas apenas no desejo de entregar aos leitores todos os dados necessários para formular um juízo, quereria resumir aqui o que me parece essencial e em certa medida esclarecer a minha posição actual (que pouco diverge aliás da de 1952): 

(1) Quanto à época romana, nada prova – nem, que eu saiba, há indícios que permitam uma presunção razoável – que o território de Miranda estivesse incluído no convento asturicense e não no bracarense. Aliás este ponto nada (ou muito pouco!) afecta o problema actual, porque não é ao séc. V que remontam os caracteres linguísticos que séculos mais tarde oporiam leonês e português. 

(2) No período suevo-visigótico (sécs. V-VIII) continuamos a não saber positivamente se essas terras pertenciam à diocese eclesiástica de Astorga se à de Braga – mas agora as probabilidades parecem inclinar-se mais para a segunda do que para a primeira hipótese. Efectivamente, a interpolação de Aliste no «Parochiale» suevo não prova que este «pagus» não pertencesse a Braga – tanto mais que ele não figura, em nenhum dos manuscritos do mesmo, como pertencente a Astúrica –, e, por outro lado, mesmo que Aliste fosse asturicense, nada impedia que Miranda pertencesse à diocese de Braga. Aliás, sabemos já que na lista dos «pagi» bracarenses figura sempre Astiaticum – e que pode ser Astiaticum senão o actual Sayago? E, se Sayago era bracarense, não o seriam Aliste e, com mais razão, Miranda? De resto, se a Sé de Braga mais tarde, no séc. XII, reclama a posse destas terras, afirmando-as abusivamente retidas pelo Bispo de Astorga, e vê satisfeita a sua pretensão, não será porque efectivamente elas antes lhe haviam pertencido? (Assim o pensa Avelino de Jesus Costa, no seu notável trabalho O Bispo D. Pedro e a organização da Diocese de Braga, vol. I, Coimbra 1959, pp. 109 ss., v. sobretudo p. 110 e 137). 

(3) Quanto a uma grande parte do período que vai do séc. VIII aos primeiros anos do séc. XII, sabemos que não pode ter-se aí exercido eficazmente a jurisdição bracarense e sabemos por outro lado que a Sé de Astorga em 1103 «retinha em seu poder» o Norte do actual distrito de Bragança, compreendendo as Terras de Ledra e Bragança, e mais Aliste – mas ignoramos desde quando durava este domínio como também ignoramos se esse território compreendia a Terra de Miranda (cf. Avelino de J. Costa, o. cit., p. 110 n. 1). 

(4) Admitindo porém, como hipótese não inverosímil, que Miranda e Aliste andassem ligadas, sabemos que a partir dos primeiros anos do séc. XII transitaram, pela primeira vez ou, mais provavelmente, de novo, para a posse da Sé de Braga, aquela definitivamente, esta (como também outras terras, entre as quais Sanábria) transitoriamente (talvez até ao tratado de Alcanices – 1297 –, segundo o P.e Avelino Costa, o. cit., p. 110); e que pouco mais tarde Miranda passa a fazer parte permanente do novo reino fundado por D. Afonso Henriques. Nessas circunstâncias, não assumirá especial importância para a determinação da fisionomia cultural e particularmente linguística desta região a colonização do séc. XIII a que se refere o meu artigo? Mesmo que admitamos que a população autóctone (seguramente muito escassa em número) já então falasse um idioma de tipo leonês, uma acção colonizadora que, a avaliar pelos documentos, não deve ter sido superficial (Granja e Vale de Frades – antes Villa de Fratribus –, pelo menos, são provavelmente fundações monásticas desta época), não poderia deixar de exercer uma influência duradoura, contribuindo decisivamente para a fixação desse tipo, já porque fomentou imediatamente o intercâmbio entre os povos de Miranda e das terras leonesas vizinhas, já porque, com isso mesmo, terá criado ou, decerto antes, fortalecido uma direcção na corrente das relações económicas, sociais e, em geral, culturais, orientando-a mais para leste e, por contrapartida, desviando-a parcialmente, enfraquecendo-a noutras direcções. Para fazermos ideia do papel que poderá ter desempenhado essa acção colonizadora, talvez seja útil procurarmos imaginar como se passariam as coisas se, em vez de mosteiros e cavaleiros leoneses, tivessem sido entidades portuguesas (o mosteiro de Castro de Avelãs, os templários de Algoso, Nuno Martins de Chacim, por exemplo) as que entrassem nos sécs XII e XIII a possuir e colonizar essas terras de Riba-Douro: não seria provável que as populações autóctones (continuando a admitir que falassem um idioma de tipo leonês) perdessem o seu falar originário e adoptassem o português – como aliás sucedeu mais tarde noutras terras do distrito de Bragança e em Riba-Coa? Mas, repito, nada nos permite ter como certo que fosse de tipo leonês esse falar originário – como nada nos permite ter como certo que o não fosse; nada nos impede porém de admitir a possibilidade (que não é a certeza) de que fosse essa colonização a própria causa determinante de que os mirandeses falem hoje leonês. De facto, não é possível afirmar que «uma colonização não pode implantar uma língua senão em terreno despovoado» – pois são bem numerosos e conhecidos (e de ao pé da porta) os exemplos de comunidades que mudaram de língua, e por vezes de forma bem rápida. Aliás, não se afirmou que, a não ser leonês, deveria ser português o tipo de idioma falado em Miranda antes do séc. XIII. Porque não seria, por exemplo, de um tipo arcaizante, que não participasse nem das inovações ocidentais nem das orientais? Quanto à topografia da região, nunca ela pode ser invocada como prova de um facto de natureza histórica – «que Miranda pertenceu sempre à terra Asturicense e não à Bracarense» –, porque é sabido que o homem se sobrepõe à geografia. Não convém aliás exagerar as dificuldades de comunicação entre Miranda e Bragança (e entre Miranda e Mogadouro, Freixo, Algoso, Macedo e Vimioso?): os vales dos rios não são tão profundos nem tão escarpados que tivessem impedido um constante intercâmbio entre Miranda e as regiões lusófonas limítrofes, no sentido leste-oeste e no sentido contrário, intercâmbio que se manifesta hoje quer no léxico (abundante número de lusismos do dialecto mirandês; numerosas palavras de origem leonesa cuja área de expansão se estende até ao coração do distrito de Bragança e até mais longe ainda), quer na cultura material e espiritual (alfaias e práticas agrícolas e domésticas, por exemplo – carro de chedas e berbiões, trilho. «morilhos», uso do «arico» –, transpondo em grande número todos os limites naturais e linguísticos e difundindo-se largamente por toda uma vasta área transmontana e leonesa).] 

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